Aeön


     Em alguma data em um futuro distante, perdido num calendário digital, uma civilização vivia, se assim puder ser chamada. Não se sabe porquê, quão menos o que será; o que dificulta a definição do que está sendo. A existência era o que se tinha. História, um termo apagado da mente das pessoas. Ali, naquele planeta que talvez fosse a Terra, tudo parecia automático. Não dava para ter certeza de nada.


     Nesse mistério de vida, no desconhecido da pequena imensidão, Aeön acordou, com mais um sonho vívido passando por sua mente. Quando sonhava com um mundo verde, vivo, louco e original, em seu ponto de vista, sua esperança renascia, de acordo com sua criatividade. Segundo o que ouvia na escola, a palavra mais bonita que se encaixava nas suas ideias era “natural”, apesar de não saber exatamente o que ela significava.

     Apertou um botão para abrir a cortina e a janela, sentindo um vento leve no rosto, e observava a paisagem cheia de prédios, cheia de robôs, luzes piscantes, sons silenciosos... monótono ao extremo. Colocou uma mecha do cabelo negro e curto atrás da orelha e franziu os lábios, incomodada. Não era nisso que ela queria viver.

     Espiou o céu azul, olhou para o tablet na prateleira baixa da parede, com o aviso de que estava na hora de ir para a escola. “Que escola o quê. Vou fazer algo diferente.” E desligou o aparelho.

     Esse pensamento pode ser algo completamente estranho, mas para uma garota de 11 anos, os temas baixados da escola não eram nada simples de se entender. Num mundo robotizado, onde pouca coisa tinha a ver com um processo evolutivo biológico, onde a inteligência artificial estava presente em qualquer objeto, onde os modos de fazer eram recriados rapidamente, a tecnologia era o principal conteúdo. A inteligência movia a vida prática e falsa, se isso não for um atrevimento grande demais.

     Escola propriamente dita, não havia. Era um prédio em que sua presença era marcada quando se cruzava a porta. O leitor óptico indicava sua ficha, e para qual sala você deveria ir. O piso detectava seus passos e mostrava o caminho, até o conector. Você sentava, conectava um cabo no tablet, e outro numa estranha parte de sua mão, externa, próxima ao dedo mínimo, por onde as informações chegariam codificadas. Seu tablet ajudaria mostrando as imagens, para um entendimento completo.

     A carga que chegava era tanta que eram necessárias poucas horas por dia, e poucos dias por quinzena. Sobrecarregar poderia causar danos difíceis, na simples mente humana. Uma carga pesada demais para uma garota de somente 11 anos de idade, na fase de crescimento. Fase que ela estava com vontade de aproveitar.

     Aeön correu até a bancada da cozinha, sentando no banco que ficava suspenso em um campo magnético, e apertou alguns botões na parede. Um braço robótico colocou na sua frente um quadrado bem fino de... plástico transparente, talvez, e outro quadrado, menor, todo dividido em cores. Ela queria registrar esse seu último sonho.

     – Wasp? – Chamou pelo computador.

     – Olá, Aeön. – A tela azul clara se acendeu. Esse aparelho era a única coisa que lhe respondia, quando o silêncio era cansativo demais. Automaticamente falando, quando o som ambiente se tornava incômodo e ela precisava de alguma companhia.

     – A vida de todas as pessoas é assim?

     – Como assim? – indagou a voz metálica.

     – Sozinhas, na sua morada, com os robôs...

     – Sim. É a melhor maneira de se viver, atualmente.

     Aeön resolveu ignorar a resposta e continuar sua arte, com os dedos e o mundo digital. Tocava na cor e ia colorindo a tela. Wasp percebeu o comportamento diferente, a presença da garota ali, e não no prédio estudantil. Ela começou a sussurrar alguma coisa, não identificado pelo eletro-eletrônico, despertando algo como a curiosidade na sua inteligência artificial.

     – O que você está criando, Aeön?

     – Estou digitalizando o que sonhei hoje.

     – E o que é isso?

     – Não sei. Mas estava tão bonito no meu sonho que não quero perder. Vou fixar no meu quarto depois.

     Enquanto seus dedos mudavam a cor de pequenos detalhes do desenho, lembrando do sonho que tivera, uma coisa que não entendera pediu por um significado.

     – Uma coisa eu não entendi.

     – O quê?

     – O que quer dizer “atualmente”?

     Wasp não soube responder.

     – Você não sabe?

     – Não. Nunca fui questionado sobre isso. Meu vocabulário foi inserido em mim, já pronto e preparado para o uso.

     – Primeira coisa que eu vejo que você não sabe. – Afastou-se um pouco e observou a imagem, não terminada. Estava gostando do resultado. De certas partes ela não estava se recordando, então criava-as, do jeito que gostaria que fosse.

     – Aeön, não é bem dessa forma. Fui programado assim, para saber e não saber de coisas. O que não está no registro geral MapStorn não é para ser conhecido.

     – Quer dizer que existe algo mais?

     – Não.

     – Não mesmo?

     – É.

     A menção dos registros o fez acessá-los, para ver como estava o aprendizado das outras vidas humanas – Wasp queria descobrir se alguma outra fazia perguntas desse gênero e não cumpria com seu regulamento. Se falava de sonhar situações tão estranhamente anormais. Sua hipótese estava correta, esse não era um comportamento padrão. Algumas chegavam perto, mas não tanto. Esquisito.

     – Aeön, de acordo com os registros, você é diferente.

     – Diferente? Por quê?

     – O código diz que humanos têm um comportamento próprio, que os tutores devem reconhecê-lo e aceitá-lo, sem interferir enquanto isso não atrapalhar seu desenvolvimento.

     – Eu estou atrapalhando? – Certas palavras não fizeram um sentido claro, pela falta de uso, e a menina não entendeu onde Wasp queria chegar.

     – Podemos adiantar a verificação?

     – Sim.

     Ajeitou-se na banqueta e esticou a mão para o computador. O scanner digital encontrou a entrada e conectou, começando a verificação do sistema, para procurar alguma alteração grave que poderia ter acontecido. Entretanto nada estava errado com Aeön Samliet. Poucos minutos mais e Wasp liberou-a para terminar a figura, para ver se entendia o que se passava na mente da garotinha.

     – Tudo certo.

     Ela sorriu: sempre a mesma resposta.

     – Wasp, posso fazer outra pergunta?

     – Claro.

     – Como eu vim parar aqui?

     O tutor emitiu um som que parecia o de travar. A tela piscou e logo se estabilizou.

     – Isso eu não sei, Aeön. Meu conhecimento sobre humanos é vago e limitado. Você está aqui e isso é o que importa. Como foi não é necessário.

     Ela não se contentou com essa resposta, mas não demonstrou. Devia existir um começo, só que ele nunca poderia aparecer. Necessário ou não, alguma coisa durante a noite tinha lhe dado uma ideia sobre isso. Se ninguém sabia, então ela podia inventar. Ou assim pensava.


     Para um mundo monótono e controlado, as imagens inovadoras eram um paraíso para a mente criativa da menina, que constantemente era presa por códigos e tempestades de informações sem lógica, apreendidas por seu subconsciente. Adiantado demais. Complexo demais.

     Seu desenho estava aceitável para o que ela queria demonstrar – para si mesma, já que seria a única espectadora. Muitos traços miúdos ainda precisavam de um retoque, porém a necessidade maior estava naquilo que ainda não saíra de dentro dela. Faltava-lhe nome para tantas coisas desconhecidas.

     Quando se desconhece algo, a tendência é tratar a ideia como inédita, por não saber que alguém já tinha pensado nisso antes. Esse fato empenha você a ir muito mais longe. Era nessa situação que Aeön estava.

     Ninguém no planeta poderia responder àquelas dúvidas, aquele conhecimento fora há muito banido das memórias digitais, assim que uma inteligência artificial muito avançada fugira do controle de humanos cientistas, mais de meio milênio atrás. Ninguém poderia responder porque era do interesse robótico que nenhum ser vivo obtivesse tais informações.

     A primeira pergunta lógica que se faz ao deparar-se com tal situação é: por que então os humanos ainda existem? Qual a utilidade que os robôs queriam de seres tão primitivos, que respiram?

     Fácil. O avanço da inteligência artificial não era assim tão grande. Os humanos não tinham testado muitas teorias e inovações quando foram surpreendidos, e a esperteza que as máquinas julgavam ter levou-as a um impasse: ao acabarem com quem tinha o conhecimento necessário, estavam impossibilitadas de evoluir, de melhorar, de se atualizar com a rapidez que cobiçavam. Nasceu ali uma dependência que seria eterna. As mentes humanas, pensantes, eram inacessíveis às máquinas, o que dificultou sua revolta. Nem tudo na vida pode ser artificial.

     O controle mundial mudou de mãos. A eletricidade tornou-se a principal fonte de comandos. A impermeabilidade já existia, e foi aos poucos aprimorada, para que o clima não se intrometesse na dominação dos robôs. Grande parte do conhecimento gerado através de séculos foi arder em chamas, junto de maquinarias que seriam desnecessárias dali em frente, como impressoras de livros, jornais; fábricas inteiras de automóveis, os próprios meios de transporte... muita coisa mudou.

     No início de tudo, poucos humanos foram poupados. Enormes fogueiras alimentadas pela carne morta arderam por dias, até que todo o risco de uma vingança fosse exterminado. Bebês e crianças sobreviveram, dando partida para a lavagem cerebral que revolucionaria o mundo. Como eram jovens, não tinham uma mente formada, o que permitia uma mudança de pensamentos. Um chip foi instalado no centro do sistema nervoso, para testes e afins posteriores. A criação dos menores era feita a partir de realidades holográficas até os 7 anos de idade, quando sua morada era modificada e um tutor era direcionado para sua devida educação. Seu futuro se dividia em três opções que a criança mais se mostrava apta a realizar, e nos 5 anos seguintes, conforme seu desenvolvimento mental, a decisão era firmada pelo tutor, a rotina prescrita para todos os dias da sua curta existência.

     Os últimos 400 anos tinham se passado desta maneira, máquinas e homens “convivendo em harmonia”. Havia um sigilo total em torno de três fatos. O primeiro, a genialidade humana era permitida para as pessoas que se mostravam mais habilitadas para uma lógica maior, com uma inteligência verdadeira. Esses escolhidos eram observados de perto, para se tornarem exatamente o que os robôs precisavam. Por vezes demoravam, mas tudo era facilitado para atingirem as grandiosas expectativas.

     O segundo fato: todas as tentativas frustradas de criar um ser humano artificial. Por mais tempo que passasse, por mais que conhecessem a anatomia humana e por maior que fosse a capacidade de gerar, não era possível recriar a vida, com o menor índice de artificialidade. Não conseguiam fazer um robô precisar de ar, precisar de alimentos, precisar de um coração, ou pensar de maneira livre, como o cérebro humano. Os sistemas eram entendidos, mas não imitados. Matéria não se cria, se transforma.

     O terceiro era o pior e ao mesmo tempo o melhor fato. Nenhum humano tinha conhecimento do passado verde e vivo das plantas, dos animais. Como os humanos vivem? Árvores eletrônicas que fazia as trocas gasosas. Como o controle robótico não era flexível, nenhum humano sabia que eles habitavam apenas um continente terrestre. O mar, do outro lado, ainda existia, e era estritamente monitorado. Com o término da sétima e maior era glacial, a temperatura do planeta aumentara, e pouca foi a água que resistiu em estado sólido. O nível do mar se elevou assustadoramente, e nos limites da cidade existiam barreiras muito grossas, com uma altura exagerada, para impedir o avanço do mar. A planície dos robôs ficava pelo menos 200 metros abaixo do nível da água.

     No meio desse mar todo, uma ilha milagrosamente ressurgiu das águas, coisa que gerou um alerta preocupante nos pensamentos artificiais do mundo: a natureza ainda existia. Florestas ainda cobriam grandes trechos daquela terra desconhecida do outro lado do globo. Depois que encontraram a primeira ave marítima pescando seu alimento, pararam de analisar e voltaram aos seus domínios, deixando essa novidade de lado, enquanto não atrapalhasse.

     Essas informações não se encontravam disponíveis no registro geral para os tutores. Era necessária uma senha para acessar essa parte, e poucos a conheciam.

     Wasp se impressionava com os traços delicados e firmes daquele desenho cheio de verde, cheio de loucuras que estavam suspensas no ar, das cores berrantes que surgiam de misturas de duas matrizes. Dois seres semelhantes a humanos também estavam naquela obra, e incrivelmente detalhados. O computador queria entender como isso era possível, uma vez que Aeön não tinha um contato direto e íntimo com nenhum outro ser da sua espécie. Cada um era solitário na sua própria existência, o que dava um ar muito melancólico ao lugar acinzentado em que viviam. Tornava-o mais dramático. Não que teatro e sentimentos fossem coisas existentes nos dias de hoje. Palavras totalmente esquecidas num passado remoto.

     – Você não sabe mesmo o que é isso, Aeön?

     Ela negou com a cabeça, concentrada demais para falar.

     – É bonito. Você é uma ótima artista.

     Agora, perto dos dois humanoides havia um menor, sorrindo tímido, com doces olhos castanhos. Existia um animal com quatro patas, com a cabeça na mão do pequeno, recebendo carinho. Se Wasp fosse um ser vivo, ele estaria sorrindo também. Pois aquilo ali dava para chamar de felicidade.

     – Era assim que estavam no seu sonho?

     – Mais ou menos. Não lembro direito. Então estou inventando.

     O que Aeön estava inventando um dia já fora realidade. Famílias já haviam habitado a Terra, por muitos anos, unidas por laços consanguíneos. Hoje, sangue era só um líquido vermelho que estava no seu corpo, porque sem ele você não conseguiria sobreviver. O coração não era mais símbolo de amor. Toda essa beleza se perdera, por causa de robôs sem sentimentos, que mantinham isolados cada um dos 2 bilhões de habitantes da cidade, aproximadamente. A população não passava disso, a reprodução era algo controlado, prazer era um estado corporal completamente ausente.

     A política dos robôs, nesse sentido, parecia ser: se nós não temos, vocês também não têm. Dessa forma, a humanidade era privada de mais coisas ainda. Muitas dessas que tornariam a vida mais prática e menos chata até para os robôs. Não que estes reclamassem de alguma coisa.

     – Eu estou com fome, Wasp.

     Nesse momento lembrou-se que ao acordar não comera nada, indo direto para a bancada registrar as imagens.

     – Quer algo especial?

     – Um suco, por enquanto. Quero terminar esse desenho.

     Faltava pouco. Sua ideia estava bem completa, agora. Aquele grupo de pessoas vivia junto, em uma estranha morada em cima de uma árvore, mesmo que Aeön não soubesse como chamar a estranha criação, que saía do chão e se abria em folhas azuladas, escuras. Um vestido alaranjado e vermelho cobria a pele morena do lado feminino dos humanoides. No masculino, as cores eram verde e amarelo. Na criança, lilás. Eles ocupavam um pequeno canto do desenho todo, onde mais árvores e flores formavam a paisagem, com um rio correndo por perto. Animais com asas voavam contra o sol, e um outro, estranho, observava a água correr. Ele era cheio de listrinhas.

     Se existissem livros, todas as ideias da menina seriam batizadas, toda a realidade passada daquelas figuras viriam à tona. A pequena Aeön Samliet descobriria que aquilo não era um sonho, apenas. Ela acreditaria ainda mais que aquela cena poderia ser real, não exatamente como estava retratado, mas real. Muitas coisas fariam sentido no mundo que ela sonhara, muitas histórias poderiam nascer dali.

     Pena que isso não existia mais. Pena que a menina teria de se contentar com seu desenho, com seu sonho, com sua vontade. Se ela soubesse desses termos, se perguntaria: o que foram histórias? O que foram livros? O que FOI, afinal? E isso que foi, não pode voltar a ser?

     Se ela soubesse que no mesmo planeta em que vivia, junto dos mesmos robôs que controlavam toda a sociedade, a natureza toda não tinha morrido, não estava nas mãos desses seres de aço, não estava somente em sua mente, uma esperança nasceria. Um passado incrível viria à superfície para ser descoberto por ela, que tanto se entristecia com esse mudo desprovido de cores.

     Aeön sorriu quando tocou na cor preta e deu zoom no canto do desenho, escrevendo o nome que acabara de pensar, e assinando. Suas palavras foram “My Beautiful World, by Aeön.”


     Agora, mesmo com toda a maldade dos robôs, mesmo com o fardo de não conseguirem criar algo tão incrível como os simples humanos, contrariando seu egoísmo e ambição, a vida continuava, a natureza se recuperava de tanto fogo, tantas cinzas, tanto lixo... Se a mente humana recriava aspectos vistos apenas por antepassados em uma época longínqua, uma época onde existiam países, idiomas, livros, histórias, sentimentos e conhecimento... isso significava que a supremacia dos robôs era vulnerável. Era vulnerável à vida real. Isso quer dizer que o fim dessa era robótica pode ser prevista. E está prestes a começar.

     Mais precisamente no ano de 2788.

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